segunda-feira, 14 de junho de 2010

Entrevista Luiz Roberto Santos Moraes

Entrevista publicada no site A Tarde On Line em 23 de julho de 2007.

Salvador carece de um plano diretor para águas e esgotos. Essa é a avaliação do professor titular em Saneamento, do Departamento de Engenharia Ambiental da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Luiz Roberto Santos Moraes. Em entrevista à repórter Tássia Novaes, do A Tarde On Line, o especialista aponta os principais problemas de saneamento básico que assolam a capital e tece críticas a projetos como o Bahia Azul, que na sua opinião, consumiu uma grande quantidade de recursos, mas ficou aquém das necessidades da população, principalmente a de baixa renda. Moraes defende ainda a construção de um processo participativo que inclui a população nas tomadas de decisão em prol da melhoria urbana. Confira.

"Bahia Azul enterrou US$ 300 mi lhões em Salvador". (Luiz Roberto Santos Moraes, Professor da UFBA)

A Tarde On Line - Salvador tem uma carência muito grande em termos de planejamento urbano.Como está a situação atual do esgotamento sanitário na cidade?
Luiz Roberto Moraes - Há uma carência em se planejar a infra-estrutura da cidade. Salvador não tem até hoje um Plano Diretor que contemple de maneira integrada os diferentes componentes do saneamento: abastecimento de água para população, esgotamento sanitário, manejo e drenagem das águas pluviais e manejo dos resíduos sólidos. O que temos são planejamentos estanques.

ATOL - E por que a Embasa não dá conta do saneamento?
Moraes - A Embasa é a concessionária do abastecimento de água e do esgotamento sanitário já que a prefeitura não exerce o poder de titular, ou seja, poder de responsável junto à Embasa. A Embasa atua na cidade como quer. Daí surgem programas do porte do Bahia Azul, que pretendeu ampliar a cobertura de esgoto da população de Salvador que era de 26%, em 1995, a 80% em cinco anos. Só que essa meta não foi cumprida. Nove anos depois [veja bem, são quatro anos fora do prazo] atendeu apenas 68% da população. Isso merece uma análise. Por que o Bahia Azul enterrou em Salvador 300 milhões de dólares já que implementou apenas 42 pontos percentuais da população sem atingir a própria meta do projeto inicial?

ATOL - Mas dados oficiais do governo disponíveis no site da Secretaria de Desenvolvimento Urbano afirmam que cerca de 2,5 milhões de habitantes são beneficiados com o Bahia Azul...
Moraes - Não, são dados ilusórios. Isso é propaganda enganosa. Se você for calcular a atuação do Bahia Azul [68%] em cima da população atual de Salvador [2,7 milhões de habitantes, segundo o IBGE] dá algo entorno de um 1,1 milhões de habitantes beneficiados. A gente tem que analisar, porque a Prefeitura não atua de forma integrada com a Embasa, planejando para onde levar as obras de infra-estrutura em esgoto que o Bahia Azul tem implantado na cidade. Essa é uma questão do ponto de vista institucional que precisa ser revista.

ATOL - Nada vem sendo feito além das obras do Bahia Azul?
Moraes - Na área de drenagem de áreas pluviais, a Prefeitura no final da gestão Fernando José [1989-1992] contratou um Plano Diretor de contenção de encostas e drenagem das águas pluviais. O dinheiro foi gasto e apenas foram levantados os pontos críticos. Depois foi feita uma revisão do Plano Diretor de Salvador na segunda gestão do governo Imbassahy [2000-2004]. Agora com João Henrique está sendo revisada a revisão feita por Imbassahy. Em todo esse tempo foram estudadas as questões relativas ao saneamento de maneira precária. Agora seria necessário considerar as diferenças. Do ponto de vista do planejamento ainda há muito o que fazer em Salvador para que a gente, no período de chuvas, não tenha os problemas que sempre acontecem. Durante muito tempo os problemas de drenagem foram solucionados apenas com obras de construção de canais e galerias de águas pluviais. Isso é insuficiente.

ATOL - A água da chuva vai pra onde?
Moraes - Cai na rua, entra pela sarjeta, corre pela calha da rua, penetra na boca de lobo, escoa para a galeria de águas pluviais [essa tubulação fica debaixo do chão], desemboca nos canais de macro drenagem para então ser levada aos rios e ao mar. Essa é uma medida estruturante. Esqueceram das medidas não-estruturantes e também do disciplinamento de uso e ocupação do solo. Essas duas vias em conjunto minimizariam os efeitos da chuva. Temos uma cidade onde a cada dia cresce o nível de impermeabilização das vias e dos terrenos. Quando a chuva cai, a água bate no terreno e não encontra meios para infiltrar. Escoa na superfície até ficar retida em um ponto mais baixo, que é onde fica inundado, alagado. Por isso as medidas não-estruturantes são importantes. É preciso limitar as construções para que a cidade não seja impermeabilizada. Cada vez que asfalta as ruas, constrói praças com pavimento de granito e diminui a área verde, tudo isso são barreiras: ao invés de infiltrar no solo, a água escoa e fica retida na rua. A Sucom deveria ser mais rigorosa no sentido de não permitir pavimentação completa em locais residenciais também.

ATOL - Mas essa é uma característica que abrange os grandes centros urbanos do país. Temos cidades erguidas com concreto e asfalto em todo lugar. Algo vem sendo feito para reverter a situação? Estamos muito atrasados?
Moraes - Realmente é uma característica que precisa ser disciplinada em diversas cidades no Brasil. O grande exemplo é Porto Alegre, que já tem um plano diretor de drenagem urbana com essa visão de diminuir a impermeabilização da cidade. Os terrenos obrigatoriamente devem ter um reservatório para armazenar a água da chuva. A água pode ser reutilizada no próprio terreno ou então é liberada para o sistema de drenagem de águas pluviais público dentro de uma uniformidade que o sistema implantado suporte. Porque se você tiver um volume elevado de água da chuva indo para as tubulações, pode ser que a estrutura não suporte o fluxo. Fora isso, diversas medidas devem ser tomadas. Por exemplo, você vai construir um shopping e ali, muitas vezes, tem um morro. O empreendedor devasta o morro sem cuidar para que o material retirado [fino e sólido] seja arrastado pra dentro do sistema de drenagem, podendo entupir, além de provocar o assoreamento dos rios. Aí a prefeitura tem que gastar dinheiro na Operação Chuva para retirar com dragas a terra que está dentro dos canais. Depois coloca essa terra em cima de caçambas, transporta para um destino final nem sempre adequado, causando transtorno na cidade e também gastando muito dinheiro. Essas questões todas precisam ser revistas.

ATOL - Falta o que para desenvolver os projetos de melhoria? Verba ou equipe capacitada?
Moraes - Quem planeja Salvador é a Secretaria de Planejamento Urbano. A Setin desenvolve as atividades de drenagem e dentro dela tem a Surcap, que contrata e fiscaliza os projetos. A Sumac faz a manutenção e conservação da cidade. Todos esses órgãos encontram diversos tipos de problemas: são poucos profissionais qualificados, sem falar na dificuldade de captação de recursos financeiros para bancar as atividades. Acaba que fica muito a desejar nos quesitos planejamento, execução, construção e, principalmente, manutenção. Temos 250 quilômetros de estrutura em escadarias e rampas drenantes. Mais da metade dessa extensão está destruída. Ou seja, dinheiro jogado fora.

ATOL - Falta uma política municipal de educação ambiental que trate a drenagem das águas pluviais como uma componente do saneamento?
Moraes - Sem dúvida. A Prefeitura limita a questão como se fosse apenas um apêndice da estrutura viária. A drenagem é feita para evitar que no período de chuva as vias por onde os carros circulam fiquem cheias de água. Só que a drenagem, além disso, é uma medida importante de saneamento básico e ambiental. Dentro da prefeitura não existe um órgão específico responsável pelo saneamento. A parte de resíduos sólidos é com a Sesp através da Limpurb. A parte de drenagem está bastante fragmentada numa visão equivocada proposta pela Setin. Água e esgoto com a Embasa, que é a concessionária, então, quer dizer, Salvador não tem uma política municipal de educação ambiental. A proposta está no discurso do prefeito João Henrique. Na sua campanha, João destacou uma proposta de formulação da política de saneamento pra Salvador. Cadê? Até agora não avançamos nessa questão. Recentemente, com a discussão do PDDU aproveitamos uma audiência pública e levamos uma contribuição singela de uma turma do mestrado de engenharia ambiental urbano composta com uns cinco alunos. Destacamos alguns itens do projeto de lei na tentativa de emendar algumas coisas na área de saneamento. Salvador carece disso.

ATOL - Sobre o exemplo de Porto Alegre citado pelo senhor, é caro implantar isso em Salvador?
Moraes - Caro é o que está sendo feito atualmente. Desperdiça-se dinheiro com medidas paliativas. Os donos de caçamba na Operação Chuva devem ficar bastante satisfeitos por todo ano ter um volume razoável de pedidos. Ou seja, se a Sucom exigisse dos construtores cuidado na remoção do material sólido, principalmente, a terra para não causar assoreamento dos rios e se também limitasse a impermeabilização do terreno durante a construção de imóveis, sendo que paralelo a isso integrasse o sistema de drenagem das águas pluviais as construções, com certeza, gastaria uma soma de recursos, a longo prazo, menor do que se gasta hoje.

ATOL - É comum encontrar nos bairros periféricos ligações de esgoto improvisadas pelos próprios moradores. Na Liberdade, onde residem mais de 130 mil pessoas, há instalações a céu aberto. O Bahia Azul não deveria solucionar isso?
Moraes - Se o programa Bahia Azul tivesse sido feito de maneira adequada deveria abranger principalmente os bairros onde não tem saneamento adequado como no subúrbio ferroviário, onde mora a população de baixa renda de Salvador. A ponta da cidade [do Corredor da Vitória a Pituba] é a região que foi iniciada a construção do sistema sanitário dotado de rede coletora de esgoto com tubulação na rua para fazer a coleta. Salvador foi planejada inicialmente com 14 bacias coletoras de esgoto das quais foram construídas a da Barra, Lucaia e Pituba. Depois foi feito o Plano Diretor de esgoto para Salvador e Lauro de Freitas ampliando o projeto para 42 bacias. A proposta inicial do Bahia Azul era atuar em 18 novas bacias fazendo as tubulações da rua para poder coletar o esgoto nas casas das pessoas, levar até o Rio Vermelho e ser lançado no emissário submarino.

ATOL - No subúrbio ferroviário os moradores freqüentemente se queixam que no período de chuva o esgoto retorna para dentro das residências. Por que isso acontece?
Moraes - Aqui no Brasil utilizamos o sistema condominial de esgoto, as casas ficam ligadas por quadra como se fosse um condomínio horizontal por onde deveria passar uma tubulação de coleta do esgoto. Isso deveria ser implantado e discutido com a população. È preciso orientar a população para não despejar materiais sólidos nem quentes, além de fazer a manutenção das caixas coletoras. Se você vê o esgoto retornando, tem a ver com obra mal feita, qualidade ruim do material utilizado e uso não adequado pela população, que, muitas vezes, descarrega outros materiais pelo vaso sanitário. Seria necessário um amplo processo de educação sanitária e ambiental. Tentaram em poucos anos empurrar de qualquer forma a rede de esgoto sem nenhum cuidado, sem discutir isso com a população. Como conseqüência, temos o não funcionamento adequado, o retorno para dentro das casas. O nível de irritação e revolta da população é evidente. Muita gente, por conta própria, quebra a tubulação e começa a lançar o esgoto na tubulação de águas pluviais. Isso não deveria ocorrer. O esgoto prejudica a tubulação pluvial. Todas essas conseqüências comprovam que não houve planejamento integrado. O que houve foram várias empreiteiras e fornecedoras de materiais faturando com as obras do Bahia Azul. Essa é a grande questão. E ainda inventaram que o emissário do Rio Vermelho estava com a capacidade quase plena e por isso seria necessário construir um outro emissário na Boca do Rio, na Praia dos Artistas. No final do governo Paulo Souto, no dia 27 de dezembro, na calada da noite, assinaram um contrato de concessão administrativa com a Odebrecht para construir e operar durante 18 anos o novo emissário. Diversas organizações da sociedade civil são contra essa obra, que vai custar R$ 758 milhões de reais, sendo que com apenas 50 milhões teríamos condição de fazer a ligação das casas até a rede coletora.

ATOL - E essa solução seria mais eficiente?
Moraes - Muito mais. Despoluiria os rios de Salvador, ou seja, esses esgotos que estão sendo drenados para os rios seriam drenados para uma tubulação de esgoto que já está construída. Quando a Embasa diz que o emissário do Rio Vermelho está com a capacidade quase plena, quer dizer que tomou uma decisão que devia ser temporária, isto é, pegaram os principais riachos de Salvador e fizeram uma barragem dentro de cada riacho para dali desviar o fluxo de água do rio, quando não está chovendo, para dentro do interceptor do esgoto mais próximo. Isso se chama captação de tempo seco. Temos cerca de 150 estações de tempo seco na cidade. A maior está em frente a rodoviária, uma barragem dentro do rio Camurugipe. O curso do rio é desviado para dentro do interceptor com o esgoto que vai levar a água do rio mais o esgoto lá para a estação de condicionamento prévia do Lucaia, que então será lançado ao mar por meio do emissário submarino.

ATOL - Quem passa por ali pode nota mau cheiro acentuado. Uma das prioridades do Bahia Azul não era revitalizar o rio Camurugipe?
Moraes - Ali você tem uma boa parcela do esgoto adentrando nos rios. O esgoto das casas que efetivamente não está ligada à rede coletora. A prioridade das obras do Bahia Azul não foi fazer ligações domiciliares e sim fazer as estruturas pra facilitar os empreteiros. O próprio Tribunal de Contas da Bahia elaborou e publicou o relatório de uma auditoria sobre o Bahia Azul. A conclusão é que a execução das ligações domiciliares não foi priorizada. Construíram um número insuficiente de ligações para os esgotos nos bairros pobres. Recomendações feitas pela Sedur ao CRA não foram cumpridas. O projeto previa, despoluição dos rios Camurugipe e Lucaia e isso é uma grande mentira. Os rios não foram revitalizados. Na gestão Lídice da Mata [1993-1996] foi feito um convênio com a Universidade Federal da Bahia (UFBA) para fazer um trabalho de apoio a Secretaria de Meio Ambiente. Desenvolvemos mais de cem páginas, porém nunca foi aplicado.

ATOL - E o esgoto que sai das residências é tratado em algum momento antes de ser eliminado definitivamente?
Moraes - Na estação de condicionamento prévio é feito um tratamento preliminar com uma grade para retirar o material sólido de grande porte. Depois é retirada a areia para não prejudicar os equipamentos que vão bombear o material até o mar via tubulação fechada em trecho terrestre, depois no trecho marítimo. É um quilometro no trecho terrestre, dois no trecho marítimo. Depois a 27 metros de profundidade tem vários bocais com cinco metros de distância cada por onde o esgoto é eliminado. Construído em 75, o emissário operou de maneira ociosa. Apenas 12% da capacidade era utilizada. Foram enterrados 100 milhões de dólares no emissário. Gastaram o dinheiro e esqueceram de aplicar na coleta do esgoto. No mar, o esgoto se mistura com a água do mar. Como a proporção é muito menor, se dilui sem causar grandes impactos à fauna e flora marítima. O processo tem que ser monitorado pela Embasa periodicamente e o relatório deve ser encaminhado ao CRA para verificar se está acontecendo ou não algum impacto ao meio ambiente.

ATOL – Então não há na cidade tratamento para reaproveitar o esgoto?
Moraes - Não. É feito apenas um tratamento preliminar. Que é o tratamento mais simples com remoção apenas do material grosseiro e com auxilio de peneiras rotativas que removem também partículas menores. Só se faz isso que é para quando sair lá fora, no mar, não vir à superfície provocando uma mancha que pode ser trazida para a praia.

ATOL - Antes do Bahia Azul ser implantado muitos condomínios residenciais, como o Inocoop e a Urbes, construíram por conta própria o projeto do sistema de esgoto com funcionamento independente e com lagoas de estabilização para estação de tratamento. Com o Bahia Azul tudo isso foi desativado e a tarifa cobrada passou a ser mais cara. Isso não é uma incoerência já que as obras deveriam trazer benefícios a população?
Moraes - Quando a Embasa recebia o sistema pronto e precisava apenas operar era cobrado 40% da tarifa de água. Com o investimento do Bahia Azul subiu para 80%. A população que teve o esgoto interligado à rede do Bahia Azul paga 40% a mais por isso. Isso gerou muita chiadeira, as pessoas reclamaram do ajuste na tarifa. Ai foi feito um acordo. Nos locais onde a Embasa implantou o sistema condominial de esgoto e a própria população assumiu tomar conta da manutenção, com medo de pagar mais caro, a tarifa foi reduzida. O problema é que a população assumiu o compromisso sem ter nenhum preparo pra isso, sem treinamento nem equipamento adequados. Muitas vezes quando você vê o esgoto retornar se deve a isso também. João Henrique ganhou muitos votos com isso porque andava pelos bairros com advogados do PDT para entrar na justiça alegando que a cobrança era ilegal. Até que ano passado o Supremo Tribunal reconheceu a legalidade da cobrança.

ATOL - Diante de tantos erros e desencontros o senhor ainda consegue enxergar melhorias daqui pra frente?
Moraes - Na minha visão, em períodos pré-eleitorais a gente tem que fazer um esforço de colocar algumas idéias no papel e propor para sociedade. Também vejo necessidade de uma mobilização por parte da sociedade no sentido de pressionar o Poder Público para poder executar obras de melhorias. É dizer para o prefeito que se não fizer direito não vai ganhar votos na próxima eleição. Acredito muito no processo participativo. Precisamos criar formas que permitam a sociedade deliberar através de conselhos municipais para que a sociedade possa estar presente nas grandes decisões. Salvador precisa de uma administração efetivamente democrática. Precisa também de um Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano que integre as diferentes ações necessárias ao município diferente do que foi feito no governo Imbassahy. Precisamos estudar a cidade que temos para saber a que queremos. Se não for feito dessa maneira, as decisões continuarão dentro de gabinetes com negociações que beneficiam as empreiteiras. Pra que maracutaia maior do que foi feito no rio Camurugipe revertendo trechos do rio, vestindo as paredes, na época gestão de Mario Quértz? Gastou uma grana violenta sem necessidade e hoje a obra não tem o menor sentido. As mudanças têm que vir da base e não sair do topo e empurrar para baixo. Se continuar assim, será sempre esse caos no período de chuva.

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